Florbela Espanca – Parte II

Descobrindo Portugal

Florbela Espanca

Como dizem vários estudiosos da sua pessoa e obra, Florbela surge desligada de preocupações de conteúdo humanista ou social. Inserida no seu mundo pequeno burguês, como evidencia nos vários retratos que de si faz ao longo dos seus escritos.

Não manifesta interesse pela política ou pelos problemas sociais. Diz-se conservadora.

Uma quase inventariação das suas diferentes personalidades desenha-se nas palavras de um dos seus contos, a que deu o titulo À margem de um soneto que integra o volume intitulado O Dominó Preto.

Inicia-o falando duma poetisa, a dizer que “vestida de veludo branco e negro, estendeu a mão delgada, onde as unhas punham um reflexo de jóias….”, informando um visitante de que tinha fechado o seu “livro de versos… com um belo soneto!”

Segue, “num olhar… afogado em sonho” e “numa voz macia e triste” a leitura do soneto e termina com “o mal de ser sozinha”…suportando “o pavoroso e atroz mal de trazer/ tantas almas a rir dentro da minha!….”

O conto continua em tons e quadros que Florbela frequentemente considera como de si própria e aqui atribui a suposta romancista brasileira: “feia, nada elegante, inteligente, mas com o talento, o espírito e a graça, e sobretudo o encanto, duma imaginação extraordinária, palpitante de vida, apaixonada e colorida, sempre variada, duma pujança assombrosa.”

Pondo na mente do marido da personagem, o seu próprio discurso, vai enunciando as “almas diversas que eram dela” e que “ocultava dentro de si”.

Entrevê a personagem “imaculada, ingênua, fria, longínqua”; “inacessível e sagrada” de “imaterial beleza” e “a morrer virginal e sorridente”.

Referindo um outro imaginário romance apresenta-se “ardente e sensual, rubra de paixão, endoidecendo homens, perdendo honras…”

Com alusão a terceiro presumível livro, qualifica-se “céptica e desiludida, irônica, desprezando tudo, desdenhando tudo, passando indiferente em todos os caminhos, fazendo murchar todas as coisas belas”. Mente “dia e noite só pelo prazer de mentir” e “beija doidamente um amante doido.”

Quem, ao ler a sua obra poética, a sua prosa, as suas cartas, os seus outros escritos, não a vê usar um milhar de vezes para si própria, termos semelhantes, ultrapassando até tais qualificativos e exageros?

Antes do final ainda a exaltação do ser poeta, que se pode considerar uma das suas constantes:

“- As almas das poetisas são todas feitas de luz, como as dos astros: não ofuscam, iluminam….”

Quem é realmente Florbela?

Ninguém é definível numa só dimensão, num só conjunto de qualidades. Todo o ser é uma intersecção de adjetivações diferentes e até opostas, ensina-me, desde a juventude, o meu amigo Diogo de Sousa, que cursava Filosofia.

No caso da poetisa tem a particularidade de ser ela própria a evidenciá-lo, permanentemente e sem constrangimentos. Parafraseando António José Saraiva e Oscar Lopes na História da Literatura Portuguesa: estimula e antecede o “movimento de emancipação literária da mulher” que romperá “a frustração não só feminina como masculina, das nossas opressivas tradições patriarcais….”

Na sua escrita é notável, como dizem os mesmos mestres, “a intensidade de um transcendido erotismo feminino”. Tabu até então, e ainda para além do seu tempo, em dizeres e escreveres femininos.

Os referidos autores, em capitulo sob o titulo Do simbolismo ao modernismo, enumerando várias tendências como “método de exposição … pedagógica” incluem Florbela num grupo que designam como “Outros poetas”. Qualificam-na como “sonetista com laivos parnasianos esteticistas” e “uma das mais notáveis personalidades líricas”.

O seu egocentrismo, que não retira beleza à sua poesia, é por demais evidente para não ser referenciado praticamente por todos.

Sedenta de glória, diz Henrique Lopes de Mendonça, transcrito por Carlos Sombrio.

Na sua escrita há um certo numero de palavras em que insiste incessantemente. Antes de mais, o EU, presente, em quase todas as peças poéticas. Largamente repetidos vocábulos reflexos da paixão: alma, amor, saudade, beijos, versos, poeta, e vários outros, e os que deles derivam.

Escritos de âmbito para além dos que caracterizam essa paixão não são abundantes, particularmente na obra poética. Salvo no que se refere ao seu Alentejo.

Não se coloca como observadora distante, mesmo quando tal parece, exterior a factos, ideias, acontecimentos.

Curiosa é a posição da poetisa quanto ao casamento. Mau grado dizer que a única desculpa que se atribui é ter casado por amor (!!!), várias vezes se afirma inteiramente contra, apesar de ter contraído matrimônio por três vezes…

Entre os poetas seus preferidos destacam-se António Nobre, Augusto Gil, Guerra Junqueiro, José Duro e outros de correntes próximas. Interessa-se também por Antero.

Pela não publicação das suas obras, ora se mostra descontente por não encontrar editor para os livros que, após os dois primeiros, deseja dar a público, ora pretende mostrar-se desinteressada, mesmo desdenhosa pelo facto. Embora o desgosto seja saliente.

Passados perto de setenta anos sobre a sua morte são falados comportamentos menos ortodoxos em relação à moral sexual do seu tempo. Algumas expressões de emocionalidade um tanto excessiva para a época, embora não exclusivas da escritora, ajudam a suspeita.

Lembramos a sua correspondência e as referências ao irmão, Apeles. Os seus excessos verbais parece não passarem disso mesmo – imoderação para exprimir uma paixão. Aqui, exaltação fora do comum de um amor fraternal mas que não destoa do falar dos seus sentimentos.

Semelhante escrever na correspondência com uma amiga. Afinal nunca esteve junto dessa mesma amiga e apenas a viu em retrato.

Esses limites alargados na expressão do amor, da amizade e das afeições, são uma constante.

Fernanda de Castro, em escrito retido por Carlos Sombrio, explica as suas contradições, ao dizer” não soube viver sem quebrar preconceitos, algemas, correntes – e não teve coragem de os quebrar todos”.

Florbela, poetisa, não pode ser separada da sua condição de mulher, das suas paixões, da sua maneira de ser, da sua vida, das suas contradições, humildade e orgulho, preconceitos, sua presença e ausência, seus amores e desamores, explica-me a minha jovem amiga Clara Santos, florbelista militante.

A sua única preocupação é ela própria, o amor, a paixão… o querer e o não querer. A par duma vida pouco comum para os cânones vigentes – dois divórcios e três casamentos em cerca de quinze anos – essa relação mulher-paixão e a exaltação ao exprimir-se sobre si própria, podem ter contribuído para os conceitos aludidos.

Repare-se neste começo de um dos seus mais conhecidos sonetos:

Eu quero amar, amar perdidamente !
Amar só por amar: Aqui … além…
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente …
Amar ! Amar! E não amar ninguém !

e no final da quadra seguinte:

Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Na época, conservadora como diz ser, leva a crer muito provavelmente, num viver que nos factos se coadunará e não se distanciará dos conceitos morais e sociais vigentes.

Fonte: http://www.vidaslusofonas.pt/

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