Confissões

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 Quando aqui cheguei, Unaí ainda tateava na escuridão de seu nascimento. Tateávamos. Eu, expulsa do útero materno, ela liberta do julgo de Paracatu lutava para manter-se viva na pós-escravidão. E, esta luta à procura de caminhos e de claridade sempre foi o laço que nos uniu.

Costumo fechar os olhos para abrir minha memória e ver minha cidade tal qual era: o casario bonito de tia Mariana e dindinho Filadelfo, a beleza triste da residência dos Rangel, a igrejinha de Nossa Senhora da Conceição, o Bar Velho, o Bar Novo… poucas ruas, largas… Poeira vermelha para dar e vender, e quando as chuvas abundantes molhavam o cerrado, a poeira se transformava em lamaçal. Andar pelas ruas exigia equilíbrio. Pobres moças vaidosas! Cambaleavam em cima dos seus sapatos de saltos altos… Acrobacias necessárias.

Unaí era um verdor pela quantidade de árvores do cerrado ainda intacto e pelos quintais coloridos pelos pés de mangas, carambolas, jabuticabas, jatobás, goiabas, cajus, tamarindos, bananeiras, laranjeiras… flor da laranjeira, virgem flor!… Tudo isso desapareceu com os loteamentos para edificar novas moradias. Tudo acabou! Todos se foram!

Meu encanto maior era o tapete de folhas forrando o chão do cerrado, cheio de frutos, de flores tímidas, de pássaros, e de cobras. Pássaros destemidos. Faziam seus ninhos ao alcance de nossas mãos. Desconheciam a crueldade da meninice!

Menti. Meu encanto maior era o Rio Preto! Águas rasas, profundas… Águas escuras para clarear as roupas… um dedo de prosa com Ana e Otília… A vida, a morte… Todas se foram!

Naquele tempo a vida não variava. Tudo era igual, repetível! As janelas não existiam!

       Alda Alves Barbosa

Mural:

Meus sonhos são tão pequeninos

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Meus sonhos são
tão pequeninos…
Quero apenas despir-me
ficar nua para o sol
e descalça pisar levemente
nesse torrão quente para
festejar a beleza do ocaso.
Quero, no chão da rua
ajoelhar-me diante da lua
e em meio a poeira traçar
letras, escrever poesias
sem rimas,
mas no ritmo dançante
como o requebro
da noite no sertão.

Alda Alves Barbosa

Fogo no rabo

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A beleza dourada se recolhia devagar. No chão da pequena Unaí alguns fios de ouro pintavam de amarelo a poeira vermelha. Um quadro belo e triste. Beleza da natureza aliada à morte do Filho de Deus. Nos anos de 1950 – Anos dourados – 1950 anos depois de Cristo, nossa cidade, ainda em tenra idade, já relembrava o sofrimento e morte de Jesus.

Dentro da Igreja Nossa Senhora da Conceição, todos os 12 passos foram visitados – a Via-Sacra: da condenação por Pilatos ao sepulcro. No adro da igreja, Lulu de Berto – aqui alguém era sempre de alguém – Vestida de preto, véu negro na cabeça (cor do luto), relembrava Verônica cantando com sua voz bela e emocionada uma música sacra. Enquanto seu canto ecoava pelo cerradão ela ia desenrolando suavemente com suas mãos uma das inúmeras réplicas esparramadas pelo nosso planeta do rosto de Jesus que ficara no tecido quando ela, a Verônica enxugara o rosto do Salvador. A emoção era intensa; poucos conseguiam não derramar lágrimas. Rememorar é acontecer novamente. Jesus sofreu e morreu outra vez. Haveria novo sepultamento. Estávamos sós. A presença Dele era espiritual. E essa ausência física do Salvador deixava todos nós no desamparo. A fé, só ela poderia nos sustentar. ‘ O cristão precisa-se se saber pecador, impotente, vulnerável. ’ Sabedor disto a fé aumenta.

Com as velas já acesas, a população ali reunida em duas filas indianas começara a procissão do Senhor Morto. Na frente um padre e Cândido (de vovó); este carregava uma cruz não tão pesada como a de Jesus. Não era momento de cânticos, nem orações… Todos estavam enlutados. Silenciosamente o féretro foi prosseguindo. Ouvíamos apenas o som dos nossos passos abafados pela poeira.

Um pouco distante, perto da Prefeitura Municipal, hoje Câmara dos Vereadores, um homem amarrara no rabo do seu cavalo – não tenho certeza se o cavalo pertencia a ele – uma lata contendo gasolina. Esperava pela procissão. E quando ela foi chegando… não pensou: ateou fogo na lata. O cavalo, apavorado com o fogo no rabo saiu em disparada em direção ao povo. Os fiéis, idosos, adultos e crianças corriam sem rumo procurando lugar para se esconder.

De longe ouvíamos as gargalhadas. O padre exasperado sacudia a batina e de sua boca saia em profusão palavras amaldiçoadas. Excomungava o ateu.
As gargalhadas continuavam!

Alda Alves Barbosa