Ritos

Grupo de crianças se reúne e faz pedidos aos “céus” (Foto: Reprodução/TV Integração) – Guiricema – Zona da Mata

Já adentrava para uns cinco meses que não chovia no imenso cerrado. O sol chapeava as pedras existentes no chão, arrancando faíscas no pico das serranias, onde a vegetação rasteira ainda existia. O sol impiedosamente queimava tudo com o seu fogo incandescente. O rio Preto não era mais um rio caudaloso, e a meninada fazia plantão nas “pedrinhas” para atravessar para a outra margem do córrego que há alguns meses atrás era um “mar de águas doce.” O arrozal do Senhor Irineu, plantado à margem esquerda do rio, antes, com suas folhas verdinhas, não passava de um mato seco amorenado pelo sol. O chão das margens, marcadas por infindáveis rachaduras, denunciava os difíceis amanhãs. “Vai faltar comida;” era o que se ouvia nas conversas nas janelas, portas e ruas quando o sol declinava para que a lua viesse diminuindo o calor e irradiando beleza do céu no nosso chão. Mas a pequena população não queria, naqueles dias, ver tanta formosura das estrelas e o universo todo pintado de azul; queria ver sim, nuvens escuras que denunciassem a proximidade das chuvas. “isto sim, era coisa bonita de se ver,” diziam, olhando pasmos para o céu estrelado.

Vera observava tudo e todos. As conversas entre os vizinhos/parentes não eram animadoras e, para amenizar o medo, ela corria para as “pedrinhas” e lá ficava olhando nas poucas águas as piabas sobrevivendo ao caos que se instalara nas suas moradas. Preferia estar no só a ouvir o determinismo desesperançado dos adultos: “Não tem jeito não, Deus se esqueceu de nós. Vamos morrer estorricados.”

Missas eram celebradas pedindo socorro a Deus, mas Vera não entendia nada que o padre falava. Era um homem grande que vestia vestido longo sempre na cor preta, o que realçava a sua pela alva. As bochechas vermelhas denunciavam uma alimentação boa em quantidade e qualidade, coisa rara no cerrado. “Deve ser por isso que a minha mãe quando comia muito abóbora com carne dizia: “comi que nem um padre.”

Ele, o padre, tinha um péssimo hábito; rezava a missa de costas; diziam que ele vinha de um lugar muito longe chamado Holanda. Falava tudo enrolado. Na hora do sermão ninguém entendia nada de nada. A missa era rezada numa língua estranha, o padre falava outra língua, e, nós fiéis do cerrado, outra. E quando ele, o padre, ficava de costas, então é que piorava tudo… aí é que ficava tudo incompreensível mesmo. Vera aproveitava o não entendimento para devanear, e nestes devaneios chegava ao céu e silenciosamente pedia a Deus que enviasse chuva para que tivesse alimento para sua gente, água para o seu rio cor de noite e beleza para o cerrado. Mas parecia que Deus não ouvia os seus gritos de socorro. Parece, porque os do padre ela tinha certeza que não. “Como Deus ia entender aquele palavreado confuso e, além do mais desprezava seu povo dando-lhes as costas?”

[…] E os dias sequenciavam numa secura só. O cerrado entrou na solidão das folhas se entregando à terra. Havia uma cruz no adro da Igreja Nossa Senhora da Conceição. Os moradores se reuniram como se esta fosse a última tentativa de socorro ao Supremo; cada um carrega em suas mãos vasilhas com água e no percurso da ponte até a igreja iam entoando cânticos religiosos pedindo piedade ao Divino. Já em frente à cruz, águas eram derramadas sobre ela; rito religioso para pedir clemência à necessidade mais premente do povo: a chuva no cerrado. Vera acompanhou tudo numa postura fervorosa de estar sendo ouvida pelo Altíssimo.

Ao longe, um relâmpago… um trovão… Devagarzinho as nuvens foram escurecendo e ficando mais próximas do chão. No alto, os raios riscavam os céus e os pingos grossos de chuva caíam na poeira deixando no ar o perfume de terra molhada. “A chuva lavava o cerrado e as almas preocupadas.” – Vera pensava, enquanto corria para casa. Eufórica e arquejante procurou por sua mãe que estava na cozinha fazendo o delicioso doce de ovos. Gritou: – Viu mãe, está chovendo; Deus ouviu nossas preces! Sua mãe olhou para ela e continuou a mexer o doce com a colher de pau. Nenhuma emoção em seu rosto, nenhum comentário, nenhum agradecimento a Deus, nenhum olhar para os céus!

Em seu quarto, ajoelhada, de mãos postas, Vera pedia a Deus para deixá-la sempre criança!

Alda Alves Barbosa – Do livro de contos “Travessias do Tempo”

Fogo no rabo

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A beleza dourada se recolhia devagar. No chão da pequena Unaí alguns fios de ouro pintavam de amarelo a poeira vermelha. Um quadro belo e triste. Beleza da natureza aliada à morte do Filho de Deus. Nos anos de 1950 – Anos dourados – 1950 anos depois de Cristo, nossa cidade, ainda em tenra idade, já relembrava o sofrimento e morte de Jesus.

Dentro da Igreja Nossa Senhora da Conceição, todos os 12 passos foram visitados – a Via-Sacra: da condenação por Pilatos ao sepulcro. No adro da igreja, Lulu de Berto – aqui alguém era sempre de alguém – Vestida de preto, véu negro na cabeça (cor do luto), relembrava Verônica cantando com sua voz bela e emocionada uma música sacra. Enquanto seu canto ecoava pelo cerradão ela ia desenrolando suavemente com suas mãos uma das inúmeras réplicas esparramadas pelo nosso planeta do rosto de Jesus que ficara no tecido quando ela, a Verônica enxugara o rosto do Salvador. A emoção era intensa; poucos conseguiam não derramar lágrimas. Rememorar é acontecer novamente. Jesus sofreu e morreu outra vez. Haveria novo sepultamento. Estávamos sós. A presença Dele era espiritual. E essa ausência física do Salvador deixava todos nós no desamparo. A fé, só ela poderia nos sustentar. ‘ O cristão precisa-se se saber pecador, impotente, vulnerável. ’ Sabedor disto a fé aumenta.

Com as velas já acesas, a população ali reunida em duas filas indianas começara a procissão do Senhor Morto. Na frente um padre e Cândido (de vovó); este carregava uma cruz não tão pesada como a de Jesus. Não era momento de cânticos, nem orações… Todos estavam enlutados. Silenciosamente o féretro foi prosseguindo. Ouvíamos apenas o som dos nossos passos abafados pela poeira.

Um pouco distante, perto da Prefeitura Municipal, hoje Câmara dos Vereadores, um homem amarrara no rabo do seu cavalo – não tenho certeza se o cavalo pertencia a ele – uma lata contendo gasolina. Esperava pela procissão. E quando ela foi chegando… não pensou: ateou fogo na lata. O cavalo, apavorado com o fogo no rabo saiu em disparada em direção ao povo. Os fiéis, idosos, adultos e crianças corriam sem rumo procurando lugar para se esconder.

De longe ouvíamos as gargalhadas. O padre exasperado sacudia a batina e de sua boca saia em profusão palavras amaldiçoadas. Excomungava o ateu.
As gargalhadas continuavam!

Alda Alves Barbosa