Florbela Espanca – Parte V – A Prosa

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A prosa de Florbela exprime-se através do conto e de um diário que antecede a sua morte e em cartas várias, de natureza familiar umas, outras tratando de questões relacionadas com a sua produção literária, quer num sentido interrogativo quanto à sua qualidade, quer quanto a aspectos mais práticos, como a sua publicação. Nas diferentes manifestações epistolares sobressaem qualidades que nem sempre estão presentes na restante produção em prosa – naturalidade e simplicidade.

Nos contos, compilados em dois volumes, O Dominó Preto e As Máscaras do Destino, muitas vezes um certo sentido autobiográfico, intimista.

No já referido À margem de um soneto, como atrás dizemos, parece pretender retratar as diferentes personalidades em que se vê, contraditórias e provocantes em relação à época

Num outro conto, Amor de outrora, pressente-se um recordar de ocorrências da sua vida e dos seus enganos e desenganos de amor, desde o primeiro ao terceiro casamento. Várias cartas, para os maridos e para os apaixonados que aparentemente pretende afastar, e para o pai, em que procura justificar algumas situações, ajudam a este entendimento.

Em Crime do Pinhal, ao lado dos “lavadores de honra” pelo assassinato de um sedutor, duas mães no afecto da mesma criança. As suas “madrastas mães” cujo grande e simultâneo afecto por Florbela é retribuído?

No inicio de As Máscaras do Destino, dedicatória a Apeles, o seu Morto, para quem mais uma vez palavras de exaltação e dor, que complementa em O Aviador, visão mítica da morte do irmão amado.

Ao longo dos contos encontram-se frases de grande beleza e força. As expressões de desejo, carregadas de erotismo, atribuídas à personagem do segundo dos referidos contos – que, de algum modo, exprimem as suas contradições na transição para a libertação da mulher. Não podemos porém deixar de os considerar por vezes carecendo de uma certa densidade. Um excessivo uso de palavras e imagens, que pouco ou nada acrescentam ao que pretende sugerir, contribui para uma menos conseguida “análise profunda dos sentimentos e paixões”, observa Y. Centeno. E, como nota a mesma escritora, quase permanente é a qualificação das mulheres em puras e impuras, em excelentes e megeras.

As suas cartas, sem a pretensão da criação literária, e talvez por isso, a par da informação factual, apresentam uma visão muito menos enfeitada e artificiosa da sua vivência. Permitem conhecê-la melhor e exprimem estados de alma mais próximos duma humanidade real do que a sua prosa formal e, até, alguns dos seus momentos poéticos.

Sobressaem as que envia à sua amiga Júlia Alves, com quem nunca se encontrará, com quem troca impressões sobre os mais variados assuntos e a quem expõe a sua alma à medida que o relacionamento vai progredindo. Numa delas dirá: “preciso tanto de ser embalada devagarinho… suavemente… como uma criança pequenina, sonhando de olhos fechados, num regaço carinhoso e quente!…” O que talvez ajude a compreender a sua vida e a sua morte.

Numa outra, já após o primeiro casamento, afirma – e isto é por ela redito e contradito: “uma das coisas melhores da nossa vida… é o amor, o grande e discutido amor… ” acrescentando umas linhas a seguir que “no entanto, o casamento é brutal, como a posse é sempre brutal…”

Escreve à sua amiga com frequência que não deixa de surpreender. Em dias seguidos. Num mesmo dia três missivas distintas. Na que se presume ser a última, um pouco menos de um ano depois da primeira, e já sem o calor que se pressente nas anteriores, agradece dizendo que não esquece o ter-se sentido compreendida e estimada

Em correspondência dirigida a outras personalidades mostra-se triste pois não vê facilitado o caminho para a publicação dos seus livros.

A Raul Proença deixa claro o seu desânimo com o que este pensa dos seus versos, juntando outros sonetos perguntando se desses gosta. O escritor virá a proporcionar-lhe a publicação (Livro de Mágoas).

Traduzirá dois livros (e possivelmente outros), um de Pierre Benoit, Mademoiselle de la Ferté, que constitui leitura obrigatória dos adolescentes da década seguinte à sua morte, e Dois Noivados de Clambol, editados pela Liv. Civilização, do Porto. Assina as traduções como Florbela Espanca Lage. Antes, em várias circunstâncias, usara Florbela Moutinho, apelido do primeiro marido.

Fonte: http://www.vidaslusofonas.pt/florbela_espanca.htm

Florbela Espanca – Parte IV – Poesia. Conceitos e Preconceitos de Amor

Descobrindo Portugal

Florbela

É a poesia que fará de Florbela o vulto que é. Quase sempre em forma de soneto.

Salvo umas tantas excepções. Algumas quadras incluídas por Rui Guedes em valiosa edição abrangendo a totalidade ou quase da poesia de Florbela .

Uma delas, com um certo sabor à chamada quadra popular:

Tenho por ti uma paixão
Tão forte tão acrisolada,
Que até adoro a saudade
Quando por ti é causada

ou esta

Que filtro embriagante
Me deste tu a beber?
Até me esqueço de mim
E não te posso esquecer…

O seu Alentejo merece-lhe palavras de exaltação. Em soneto a que chama No meu Alentejo que inclui em carta à directora de Modas e Bordados exprime-a nos tercetos finais

Tudo é tranquilo e casto e sonhador…
Olhando esta paisagem que é uma tela
De Deus, eu penso então: Onde há pintor

Onde há artista de saber profundo,
Que possa imaginar coisa mais bela,
Mais delicada e linda neste Mundo?

Escreve também poemas de sentido patriótico. Um deles, dirigido às mães, apelando que calem as suas mágoas pelos filhos que lutam e morrem na guerra em defesa da Pátria, e alguns outros de sentido semelhante.

Mas Florbela lembra claramente que o que a preocupa é o Amor, e os ingredientes que romanticamente lhe são inerentes: a solidão, a tristeza, a saudade, a sedução, a evocação da morte, entre outros… E o desejo. Mesmo quando trata outros temas, diz-me alguém que a admira. Olhemos uma das quadras do soneto que intitulou Toledo

As tuas mãos tacteiam-me a tremer…
Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço,
É como um jasmineiro em alvoroço,
Ébrio de Sol, de aroma, de prazer!

O grande paradoxo. O amor, como muitas vezes se lhe refere, sugere um sentir onde o erotismo é componente permanente. Exaltado em vários escritos, noutros pretende ser limpo do que na época se consideram impurezas.

Após os vários casamentos, diz desejar morrer virginalmente.

Tudo produto duma moral que interditava à mulher exprimir o seu prazer sexual, segreda-me uma outra minha amiga, para quem Florbela é o grande expoente da escrita no feminino. As sugestões mais ousadas sobre sexo eram tidas como degradação ou, complacentemente, como provocação, recorda-me.

Pergunta que não terá resposta fácil é saber se Florbela escreve, aproximando-se do explícito, porque pretende romper com os comportamentos tidos como convenientes e dentro do moralmente correcto.

Olhamos o soneto Passeio ao Campo onde começa

Meu Amor! Meu Amante! Meu Amigo! Colhe a hora que passa, hora divina,
bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!

e depois de referir a “cinta esbelta e fina…” e outros atributos da sua própria elegância física, continua

E à volta, Amor… tornemos, nas alfombras
Dos caminhos selvagens e escuros,
Num astro só as nossas duas sombras…

Num outro

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços…

para concluir

E é como um cravo ao sol a minha boca…
Quando os olhos se me cerram de desejo…
E os meus braços se estendem para ti…

O erotismo não fica por aqui. Num outro poema diz:

Sonhei que era a tua amante querida
………………………………………………
………………………………….anelante
estava nos teus braços num instante,
fitando com amor os olhos teus

E ainda em sentido semelhante, estes tercetos

Beija-me as mãos, Amor, devagarinho…
Como se os dois nascêssemos irmãos,
Aves, cantando, ao sol, no mesmo ninho…

Beija-mas bem!…Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos,
Os beijos que sonhei pra minha boca!…

Mau grado dizeres que, pelo sensualismo, sugerem um sentido libertário, uma interpretação do conjunto da sua obra faz pensar em posição cultural divergente.

Contraditoriamente com essa sensualidade sempre presente, afirma não poder olhar para o relacionamento sexual sem um sentimento de impureza, de brutalidade. Em alguns trechos, onde mais fortemente sugerido, as mulheres são impuras, megeras ou sujeito de outros qualificativos semelhantes.

O casamento e a posse são brutalidades, afirma e repete.

Referência:

http://www.vidaslusofonas.pt/florbela_espanca.htm

Florbela Espanca – Parte III

Descobrindo Portugal

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FLORBELA, A ESCRITORA E O CULTO

Pergunto-me o porquê da visibilidade de Florbela e da sua aceitação por um público muito mais vasto que o de muitos outros escritores seus contemporâneos, anteriores e posteriores, de qualidade se não superior, pelo menos semelhante, e de interesse e caráter mais universalista, com preocupações capazes de fazerem apelo a um mais vasto e amplo leque de sensibilidades.

Se a sua obra apresenta inegável interesse e beleza, não deixa de constituir surpresa para alguns críticos, o impacto junto do público leitor, comparado com o de outros autores de igual valia e que fora dos meios ditos intelectuais pouco ou nada são conhecidos.

Abrimos a referida História da Literatura Portuguesa, contamos os vários nomes de escritores aí citados na mesma época, atentamos na análise deles feita pelos insuspeitos autores e constatemos o numero dos que praticamente continuam envoltos numa bruma. Mesmo para leitores de mais largos voos muitos não passam de meros desconhecidos.

Após vasta inventariação de publicações, José Augusto França, na sua obra Os anos vinte em Portugal, indicando umas dezenas de escritores, a Florbela se refere dizendo-a “escondida de todos”, acrescentando todavia que “foi ela o caso de mais profunda criação entre as mulheres que publicaram nos anos 20 portugueses”.

Para outros não é um astro da grandeza de vários dos seus contemporâneos. Estará um tanto em atraso, quer quanto à forma, quer quanto às suas preocupações. Como explicar então que seja qualificada por muitos como um dos vultos do século – e o seja, pela projecção que acaba por atingir?

Hernâni Cidade referirá “a violenta contradição entre o conceito de poesia de duas épocas distantes ou próximas”.

Alguns críticos entrelinham a análise do seu comportamento e da sua obra com dizeres onde se pressente um esforço para evitarem uma sentença relativamente dura.

Natália Correia, em longo prefácio a uma edição de Diário do último ano fala do “coquetismo patético” e refere a sua “poesia maquilhada com langores de estrela de cinema mudo, carregada de pó de arroz”. E continua, exagerando um tanto, dizendo que a escritora “estende-se na chaise-longue dos seus quebrantos de diva de versos. Muito a preceito da corte dos literatos menores. Uma cadelinha de luxo acarinhada no chá-das-cinco das senhoras do Modas e Bordados e do Portugal Feminino para explicar que isso nasce da sua insensibilidade “a rupturas engendradas pelas crises do discurso lógico masculino”.

Porquê então tal expansão?

O seu culto começa nela própria.

Leia-se o poema, cantado por conhecido grupo musical e um dos mais belos:

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e Alem Dor!
………………………..
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
………………………..
É ter fome, é ter sede de Infinito!
……………………….
É condensar o mundo num só grito!
……………………….

E quantas e quantas vezes Florbela nos recorda que é poeta! E com que euforia:

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!
Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Poucos poetas o farão tão repetidamente…

De modo algum pomos de lado a beleza do que escreve, da maneira como se exprime, e do que ocupa a sua escrita.

Sem excluir a qualidade literária, não serão porém inteiramente estranhos ao multiplicar da sua leitura, aspectos que de certo modo lhe serão alheios. Entre outros, o auto retrato da sua vida que desenha um tanto distante do ordenamento e preconceitos sociais da sua época, as variadas contradições, ou aparência de contradições (como admite José Régio) a tragédia da sua morte, o seu empenhamento na publicação, esforçado e continuado, os locais onde vive, propensos à glorificação dos naturais ou próximos, o seu proto-feminismo diferenciado do que se lhe seguirá uns anos mais tarde, mas capaz de chamar a atenção.

Um nome, Guido Batelli, italiano, professor da Universidade de Coimbra, não poderá ser esquecido. Ao traduzir para a sua língua vários dos poemas de Florbela, cria um facto que não se pode dizer muito comum .

E admirando-a sinceramente, contribuirá para a edição (póstuma) de Charneca em Flor, Reliquiae e Juvenilia. É provavelmente com a sua intervenção que se fazem as primeiras reedições do Livro de Mágoas e do Livro de Soror Saudade.

Régio, sobre o silêncio da Presença, de que diz ter vergonha, explica que só mais tarde a conhece. Chama-lhe “poesia viva” que “nasce, vive e se alimenta do seu (…) porventura demasiado real caso humano”. Acompanhará sucessivas reedições de uma parte dos poemas com extenso e elucidativo prefácio, datado de 1950, onde faz análise valiosíssima, exaltando a obra e destacando alguns dos mais brilhantes momentos da poetisa…

Mas é, possivelmente, António Ferro que, em artigo do Diário de Noticias, logo em Janeiro de 1931, chama a atenção para a poesia de Florbela e provoca um acordar de críticos e leitores que até ao presente se não extingue.

Fonte: http://www.vidaslusofonas.pt/florbela_espanca.htm

Florbela Espanca – Parte I

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Vila Viçosa, final do ano de 1894, noite de sete para oito de Dezembro.

Antónia da Conceição Lobo sente as dores do parto. Nasce uma menina. Não vem ao encontro das alegrias da família. Não há assim lugar ao habitual regozijo de tais momentos. Não parece ter sido desejada por qualquer das partes. É baptizada como filha de pai incógnito. Avôs e avós também incógnitos. É-lhe posto o nome de Flor Bela de Alma da Conceição. Na literatura portuguesa será chamada Florbela Espanca. Apelido que receberá do pai, João Maria Espanca, já então levantado o véu encobridor. Curiosamente, o padre que a baptiza e a madrinha usam o mesmo apelido.

A mãe morre algum tempo depois.

Tem infância sem falta de carinhos e a sua subsistência não será ensombrada por insuficiências que atingem muitas das crianças que nascem em circunstâncias semelhantes.

O pai não a deixará desprovida de amparo. Ela própria assim o diz quando aos dez anos, em poema de parabéns de aniversário ao “querido papá da sua alma” escreve que a “mamã” cuida dela e do mano “mas se tu morreres/ somos três desgraçados” .

Será acarinhada pelas duas madrastas, como revelará na sua própria correspondência.

Ingressa no liceu de Évora. Num tempo em que poucas raparigas frequentam estudos, e bonita como é, apesar de umas tantas vezes afirmar o contrário, põe à roda a cabeça dos colegas.

Não são aqueles os primeiros versos. Antes já os escrevera com erros de ortografia. Naturalmente infantis, mas avançados em relação à idade. De algum modo, prenunciam o que virá depois.

Esta precocidade contrasta com um quê de desajustamento futuro, quando a sua escrita divergirá dos conceitos de poesia dos grupos do Orfeu, Presença e outras tendências do designado “Modernismo”, e que emergem como as grandes referências literárias da época. Das quais Florbela parecerá arredada.

Inicialmente sem dificuldades econômicas, como deixa perceber. Explicadora, trabalhará ensinando francês, inglês e outras matérias. Mais tarde, com vinte dois anos, irá cursar Direito na Universidade de Lisboa.

Publica vários poemas em jornais e revistas não propriamente dedicados à poesia, como seja Noticias de Évora e O Século ou de circulação local.

Edita os seus primeiros livros, Livro de mágoas em 1919, e em 1923 Livro de Soror Saudade, onde incluirá grande parte da produção anterior.

Refere o seu Alentejo e os locais ligados às suas origens, e exalta a Pátria em alguns poemas. Mas a sua escrita situar-se-á sobretudo no campo da paixão humana.

Contrai matrimônio por três vezes. Do primeiro marido, Alberto Moutinho, usa o apelido em alguns escritos, nomeadamente correspondência. Do terceiro marido, Mário Lage, juntará o apelido à assinatura usual, nas traduções que efetuará. Do segundo, António Guimarães, não parece haver reminiscências explicitas nos escritos de Florbela, que lhe terá dedicado obra que publica como Livro de Soror Saudade, titulo diferente do projetado e esquecendo a dedicatória.

Fonte: http://www.vidaslusofonas.pt