Interferência ou morte
O Cerrado é o segundo maior bioma brasileiro, localizado em uma grande área do Brasil Central. Por fazer fronteira com outros importantes biomas, (a Amazônia ao norte, a Caatinga a nordeste, o Pantanal a sudoeste e a Mata Atlântica a sudeste) a fauna e flora do Cerrado são extremamente ricas.
Na região existem mais de 10.000 espécies vegetais, uma grande variedade de vertebrados terrestres e aquáticos e um elevado número de invertebrados. Espécies ameaçadas como a onça-pintada, o tatu-canastra, o lobo-guará, a águia-cinzenta e o cachorro-do-mato-vinagre, entre muitas outras, ainda têm populações significativas no Cerrado, reafirmando sua importância como ambiente natural.
Além da biodiversidade, os recursos hídricos da região ressaltam em quantidade e qualidade: nas suas chapadas estão as nascentes dos principais rios das bacias Amazônica, da Prata e do São Francisco.
Apesar do seu tamanho e importância, o Cerrado é um dos ambientes mais ameaçados do mundo. Dos mais de 2 milhões de km² de vegetação nativa restam apenas 20% e a expansão da atividade agropecuária pressiona cada vez mais as áreas remanescentes. Essa situação faz com que a região seja considerada um Hotspot de biodiversidade e desperte especial atenção para a conservação dos seus recursos naturais.
Estudos realizados pelos pesquisadores do Programa Cerrado da CI-Brasil indicam que o bioma corre o risco de desaparecer até 2030. Dos 204 milhões de hectares originais, 57% já foram completamente destruídos e a metade das áreas remanescentes estão bastante alteradas, podendo não mais servir aos propósitos de conservação da biodiversidade.
Estimativas de perda da área do Cerrado brasileiro
Muito provavelmente a abertura de áreas de pastagem para a criação de gado de corte foi a principal causa de desmatamento do Cerrado. Dias (1994) sugere que até 1985 o manejo de áreas nativas para a criação de gado seria a atividade econômica que ocuparia a maior parte nas paisagens naturais do Cerrado. Nos anos recentes, entretanto, as pressões sobre o Cerrado começam a ter uma outra origem.
Dados obtidos no banco de dados do IBGE (Sidra – disponível em http://www.ibge.gov.br) indicam que a área ocupada pela cultura da soja tem aumentado enormemente no país (Figura 9). De acordo com o anuário estatístico do agronegócio (Agrianual de 2003), mesmo considerando que a tecnologia tem aumentado a produtividade, que passou de aproximadamente 2,5 toneladas por hectare em 1995 para 2,9 toneladas por hectare em 2002 (Figura 10), a área plantada tem aumentado em uma proporção muito maior. A área destinada ao plantio da soja praticamente dobrou de tamanho, indicando que o bom momento do mercado pode estar atraindo cada vez mais empreendedores para a atividade.
Essa tendência de aumento pode ser vista também em regiões localizadas na fronteira agrícola. Nessas áreas percebe-se que a introdução da soja pode mudar em pouco tempo a realidade local. Tomando como exemplo municípios localizados na região do Alto Parnaíba, no sul do estado do Piauí, nota-se que somente em 1993 a soja começou a ser plantada na região e de maneira muito tímida. Já em 2002, a área ocupada por essa cultura já tinha multiplicado por 6x a área original e aparentemente essa atividade encontra-se em franca expansão (Figura 11a). De modo contrário, culturas tradicionais como a mandioca, tipicamente associada a pequenas propriedades, tem decaído ao longo do tempo (Figura 11b). O dado ilustra que as culturas tradicionais devem estar cedendo lugar para modernas culturas mecanizadas como a soja, algodão, milho, milheto, sorgo e girassol.Um cenário futuro para o Cerrado indica que, considerando uma retirada anual de 2,215 milhões de hectares (assumindo uma taxa conservativa de 1,1% ao ano), considerando a existência de 34,22% de áreas nativas remanescentes (baseado na estimativa dada por Mantovani e Pereira [1998] para as classes ‘cerrado não antropizado’ e cerrado ‘antropizado’) e considerando que as unidades de conservação (que representam 2,2% do Cerrado) e as terras indígenas (que representam 2,3% do Cerrado) serão mantidas no futuro, seria de se esperar que o Cerrado desaparecesse no ano de 2030. Apesar dos vários fatores que influenciam nessa projeção, é possível perceber pelo menos duas coisas importantes: primeiro é que temos que encontrar formas de elevar a importância da conservação do Cerrado para o mesmo patamar de sua importância para a produção agrícola e pecuária e segundo, e talvez o mais importante, é que ainda temos tempo de reverter essa situação e iniciar um trabalho de recomposição de áreas consideradas importantes para a biodiversidade e para a conservação dos recursos hídricos.
Indicamos algumas ações emergenciais que poderiam ser levadas a cabo pelo Governo Federal em articulação com os governos estaduais e municipais:
• Adotar uma postura de desmatamento zero para o Cerrado, pelo menos até que seja feito um planejamento integrado para a ocupação do bioma;
• Criar programas de recuperação de áreas degradadas como forma de compensar as áreas com desmatamento evitado;
• Ampliar a porcentagem das áreas de proteção integral no cerrado, que hoje não chega a 3% do bioma, preferencialmente conciliando o aumento da proteção com a política de proteção de recursos hídricos;
• Colocar em prática o zoneamento ecológico-econômico como forma de planejar a ocupação do Cerrado atrelando seus cumprimentos/descumprimentos aos instrumentos tributários, como o Imposto Territorial Rural – ITR;
• Implementar um programa de monitoramento continuado por satélite de forma a acompanhar o uso do solo no Cerrado;
• Estimular a manutenção e o fortalecimento socioeconômico dos núcleos de produção mais tradicionais, incentivando a diversificação de produtos em regiões ambientalmente mais sensíveis, onde os produtores rurais seriam estimulados a implantar sistemas produtivos mais adaptados às condições locais e menos impactantes, agregando valor aos produtos típicos do Cerrado;
• Cobrar a recuperação ambiental daqueles proprietários rurais que estão com passivo no cumprimento do estabelecido pelo Código Florestal;
• Elaborar mecanismos capazes de agregar valor de mercado aos produtos de regiões onde os proprietários são ambientalmente corretos;
• Priorizar a aplicação dos recursos públicos (como o Primeiro Emprego, PRONAF, Fome Zero) nas áreas carentes mas que ainda possuem uma boa cobertura vegetal ou estejam localizadas nas áreas de influência das Unidades de Conservação;
• Investir na formação de profissionais especializados em conservação da biodiversidade e de recursos hídricos, ademais de naqueles dedicados ao uso racional de componentes do Cerrado;
• Efetivar um pacto político entre ministérios, estados e a sociedade de forma a implementar as ações acima.
Galeria:
Referências:
-Estimativas de perda da área do Cerrado brasileiro
Ricardo B. Machado1*
Mário B. Ramos Neto1
Paulo Gustavo P. Pereira1
Eduardo F. Caldas1
Demerval A. Gonçalves2 Nazareno S. Santos2 Karyn Tabor3
Marc Steininger3
1Conservação Internacional – Programa do Brasil
2Oreádes Núcleo de Geoprocessamento
3Conservation International – GIS & Regional Analysis – EUA