Raízes

Raízes

Enquanto meu olhar enternecia com o desfilar dos carros de bois na Av. Governador Valadares, voltei no tempo: “evém o carro de boi” – gritava eu ,menina ,para meus irmãos. A entrada sempre era triunfal, era bonito ver o guia na frente mostrando o caminho aos bois; era triste ver os bois curraleiros tentando tirar a carroça do lamaçal da rua. O guia chegava o ferrão e ainda gritava: – Lazão, Baeta, vamos – ôoa vamos! E assim entre gritos e ferroadas os bois e a carroça saiam da lama. Era tão comum vê-los por ali, sempre passantes, trazendo lenha para ser queimada nos fogões, madeira decepada do cerrado; sacos de milho, de feijão roxo, sacos de arroz para serem vendidos na cidade, mas não perdiam a beleza do mistério de quem carregava o segredo da terra. Alguns vinham vazios, não traziam nenhuma mercadoria, transportava a esposa do pequeno fazendeiro, mulher de labuta, trabalhadeira, madrugadeira, analfabeta, bem parideira, criadeira de sua enorme prole. Vinham fazer compras na cidade. Retornavam rápido, tinham pressa, carecia de gente para vigiar os trabalhadores. “O olho do dono é que engorda a boiada” – costumavam dizer. E enquanto atravessava a ponte de madeira, meu coração chorava com a cantiga do carro, cantiga saudosa, choro que eu ouvia já distante, quase em légua. Uma légua de saudade é saudade por demais!… Hoje a saudade passa pela avenida asfaltada como peças representativas do passado. Quando retornam às fazendas, ficam encostadas num canto como se olhassem os caminhos por onde passaram. Enquanto isso vamos rangendo juntos as rodas do presente e olhando o passado desfilar… As lágrimas teimam em cair… Caem… Viro a esquina para esquecer as faltas!

Alda Alves Barbosa

 

 

EVAS

Sempre que meu olhar pousa sobre uma mulher, inevitavelmente entoo uma triste canção que não chora, mas diz: “Mais uma Eva!”Herança que nós, mulheres carregamos desde que Deus criou suas criaturas. … e  Eva seduziu Adão oferecendo-lhe o fruto proibido. Um pecado que determinou a difícil caminhada das filhas de Deus desde a criação do mundo até os dias de hoje. Evas, labirinto de pedras rastreando o limbo; Evas apedrejadas; Evas bruxas queimando no crepitar das fogueiras; Evas que sangram; Evas, moedas de troca; Evas para divertir os homens…

Quanto paradoxo! Quanto desrespeito para com as Evas que  sempre guardaram suas sementes nos ovários para povoarem  o mundo; que parem homens e mulheres, que envergam sua própria alma no convívio da dor e da alegria, do encontro e da ausência; da solidão e da espera para que a luz da vida aconteça.

Evas subestimadas que surpreenderam os homens fazendo a  revolução do século XX, penetrando tão profundamente na sociedade que não é mais possível dizer a elas o que se deve ou não fazer. Nós, as Evas, melhor dizendo, as mulheres, prosseguimos na direção da nossa própria liberdade que deveria ser natural, mas que foi conquistada arduamente, sem deixar a nossa essência, o feminino, lançando mão da loba que existe dentro de nós.

Sim, somos lobas… Não admitimos vicejar em atmosferas impostas, nem nos moldamos a velhos paradigmas obsoletos.

Não, não é mais possível retroceder, mas é preciso avançar. Onde? A cada dois minutos, cinco mulheres são espancadas no Brasil. Os estupros e os abusos são crimes que, em geral, ocorrem dentro das próprias casas. Ganhamos salários menores que os dos homens para ocuparmos os mesmos cargos. Ouvimos piadas machistas o tempo todo. Sofremos cotidianamente com a noção de que somos propriedade do homem e, portanto, podemos ser usadas a seu bel-prazer. Ainda somos vendidas junto com a cerveja e tudo mais que o mercado quiser.

Por que continuamos em uma realidade tão inóspita? A resposta é óbvia e simples: porque a sociedade segue sendo machista, apesar de todos nossos avanços. Uma cultura tão antiga, que perdura há milhares de anos, não muda de uma hora para outra ou de um século para o outro. A humanidade ainda não experimentou viver em liberdade e igualdade, sem discriminações. E tão pouco chegará lá se não nos mobilizarmos, não atuarmos, não transgredirmos.

Resvalo entre palavras, quase toco o sonho, na quase solitária intenção de que um dia não precisaremos mais comemorar o dia da mulher, porque ser mulher é tão natural! Não oscilamos entre o ser e o não-ser. Nós somos… Nós existimos com nossos defeitos, com nossas qualidades, com nossa incompletude, assim como todos os seres humanos!

Alda Alves Barbosa

Dualidade

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Trilhei caminhos e descaminhos a procura de ti. Percorri estradas escrevendo versos dos reversos… Deserto plantado por ti na minha vida. Despi meu coração, e nu, não sinto tédio, não sinto dor, não sinto nada. O que fui não sou mais.

Afastei-me de ti, da sua sombra… O frio da tua ausência foi sepultado. Mas em obscuros momentos costumam ressuscitar. Meu mundo fica estreito e derrama fragilidade – Caverna sem fim!

O que sou sem ti? Como saber se meu coração está realmente vazio? Como obter respostas se não sei se o que sinto é real ou irreal?

Sinto tanto sono! Sinto uma imensa vontade de continuar a caminhada… Meu coração está vazio, sem tédio, sem dor…

Ah, esta dualidade turbulenta!

Dúvidas

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Não sinto que vivi o ontem.  Acho que alguém o viveu por mim. Não me lembro de tê-lo vivido ou não desejo lembrar-me. Que isso importa? O ontem já foi vivido por mim, por alguém ou por ninguém. Passou.

Hoje já é tarde. Um torpor ronda meu cérebro. As portas, as janelas continuam trancadas. A seiva da vida parece escorrer para fora de min. A ausência de luz me presenteia com uma passagem para uma caverna (de Platão?). Assim é o meu sentir. Nada existe fora dali: nem mortes, nem vidas. Tudo é ausência; nada sinto, nada sei, nada desejo! Um dia vivi, um dia tive sonhos… Um dia. Agora espero a última viagem.

Um fio de luz adentra a caverna. Sigo-o. Abro a porta. Lá fora, o barulho da vida… As pessoas vão e vêm. Por algum tempo fico a observa-las. A realidade está ali, neste vaivém, nesta indas e vindas, ou apenas nas idas… sem retornos!

Alda Alves Barbosa

Procuras

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Como todos os dias esperei ansiosa a noite chegar. Iria abraçar minha poesia, conversar com minhas criaturas, inventar mundos… Eu iria viver. 

A noite chegou e encontrou minha alma na escuridão de um tempo não vivido. Decidi morrer no hoje para procurar os ontens num tempo onde eu me debruçava nas ruínas e dormia o sono dos sepultos. Este tempo sepulcral eu o quero de volta para entender os porquês das minhas ausências… Tempo que desisti dos meus sonhos, desisti de ser… não fui o que deveria ter sido.

E se eu tivesse seguido em frente em vez de virar à esquerda? Perdi-me nas bifurcações. Escolhas erradas ou não me preocupei em escolher? Ignorei as badaladas da cruz se cruzando; ignorei a mudez do tempo passando; ignorei os alinhavos do passado. Tornei-me escrava da dor, mendiga da compreensão do outro. Fiquei com a alma vazia… me perdi pelos caminhos das interrogações.

Hoje eu procuro este tempo… Pra quê? Porque este tempo me pertence, pedaços meus estão ali. Neste tempo minha alma chorou as perdas e eu me perdi de mim… Encontrei-me entre as ruínas sobre o olhar  que chorava.

Nas alternâncias entre o viver e morrer, depois de todo cansaço, procuro estes instantes transformados em décadas  com os olhos de inverno… Talvez estejam no quarto escuro do medo!

Alda Alves Barbosa

Parabéns Unaí

Hoje vou andar pelos caminhos do passado. Vou desbravar este cerrado mineiro, levantar a poeira vermelha deste chão pobre, mas rico em nascedouros de água, onde obras de arte retorcidas expõem suas esculturas naturais. Vou tocar na solidão do povoado do Porto do Capim Branco cravado numa colina cercado de sombrias matas e charcos, à margem direita de um rio de água escuras, o Rio Preto. Vou pisar nesta terra removida de sepulcros, onde tantos sonhos jazem adormecidos. E vagueio entre um instante e outro, absorvo ilusões, entro em cada ninho e diálogo com cada sertanejo, vestida com abraços da saudade: amo o vento que sibila nas folhas; amo essa paciência física como repouso de todos os ossos. Vivo cheia desta substância lúgubre, sabor solitário das sementes mortas acorrentadas neste chão. Passeio entre documentos entre origens e chego no dia 15 de janeiro de 1944. O povoado se desvincula da terra-mãe. “Independência ou morte”. O coronelismo mostra o rosto. Tempo que parecia não ter ponto final e que deixa na minha alma um sabor que me deprime. Desnecessário dizer que este tempo adormeceu envelhecido entre as folhas amareladas que se soltaram das arvores do cerrado. 1960, uma espessa luz se acende no Planalto Central – Nasce Brasília! 1967, imigrantes chegam de várias regiões mineiras- Trazem sonhos para serem tecidos neste chão. Neste mesmo tempo muitos Unaienses partem – Buscam seus sonhos, buscam o conhecimento e o fim da obscuridade. Outros olhares se voltaram para este chão. De inúmeras regiões do Brasil ouviu-se o canto deste cerrado. Encantados pela harmonia sonora, aqui chegaram. A paisagem foi modificada: As esculturas naturais foram substituídas por véus roxos, amarelos… Nos anos 80, nas madrugadas solitárias, o cerrado grita por socorro, grito tão longe que sai riscando de pedras os caminhos. Ninguém ouve. A motosserra não perdoa… Os féretros seguem pelas rodovias. Sepultamentos em lugares incertos. O coronelismo ameaça ressuscitar no escuro das noites… muitas almas se apequenam diante do medo. A politicagem, herança maldita, fantasma atemporal, desliga as luzes do fim do túnel… Um longo e frio inverno… Chama de cinzas! Hoje, está terra ensolarada completa 70 anos de emancipação política. Possui idade suficiente para exigir respeito de todos. Vou além: respeite-a e a ame.

Hoje plantei sementes de esperanças… Desejo ardentemente que a terra se abra para que o plantio floresça!

PARABÉNS UNAÍ!

Alda Alves

No silêncio do coração

No silêncio do coração

Certas atitudes me convidam a uma reflexão. Algumas, eu apenas observo sem me deter em detalhes. Meu coração não modifica o ritmo, continua dançando no passo e no compasso do cotidiano.

A reflexão, esta sim, me sustenta quando entro no descompasso da vida. E por me saber assim, necessitando quase sempre deste alimento, meu olhar concentra no purgatório humano para enxergar os olhos da humanidade.

Procuro um recanto. Faço um pacto comigo, e começo a escrever. Transformo este cantinho do mundo no meu próprio canto.

Para mim meu lar pode ser em qualquer lugar solitário: um fio de água procurando um rio, folhas secas que soltam das árvores forrando o asfalto, gotas d’águas que caem mansamente dos céus. Meu lar pode ser o assobio do vento passando por grandes blocos de árvores.

Meu lar pode ser o silêncio do meu coração; o braço que tenta abraçar o mundo; o brilho de cada olhar… o grito silencioso das dores do mundo!

Alda Alves Barbosa

Um passo… outro… outro…

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E se de repente uma luz cálida envolvesse meu ser e eu fosse abraçada pelos desconhecidos habitantes de mim… Eu e meus caminhos, eu e meus abismos… Como trilhar tantas retas, tantas curvas sem correr o risco de estagnar no percurso? Eu limitada sem a largueza dos horizontes. Eu e os meus medos impedindo a minha passagem para os amanhãs.

Nos ontens, as barreiras foram superadas com o frio das lágrimas brotando dos poros. Nos meus ontens, os medos foram extirpados momentaneamente, o coração disrítmico socando meu corpo, minha alma.

E hoje, outra travessia se faz necessária… um pisar lento, pensado, calculado, para que os passos não acordem um sentimento que dorme dentro de mim.

Mais um passo… outro… outro… do outro lado o crepúsculo me arrasta com seus fios coloridos, para além de todos os horizontes.

Alda Alves Barbosa

Minhas, ou nossas fomes?

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Sim, sou eu essa mulher que debaixo do sol ardente, debruça sobre o asfalto quente para colher o lixo que alguém plantou.

Sim, sou eu essa mulher que sem nenhum receio, pede de maneira afável, que joguem o lixo no lixo.

Sim, sou eu essa mulher que muitos recebem com sorrisos benevolentes, quando peço-lhes que deixem a calçada livre para o povo unaiense passar!

Sim, sou eu essa mulher que se indigna quando decepam as poucas árvores do nosso cerrado, ou quando mutilam seus galhos, tirando-lhes a beleza verdejante.

Sim, sou eu que amo flores e derramo lágrimas na primavera unaiense – primavera sem cores, sem perfumes… amores imperfeitos.

Sim, são minhas estas lágrimas doídas que se juntam às águas do Rio Preto, com saudades dos peixes dourados, amarelos brilhantes como a luz das estrelas.

Sim, são minhas estas palavras… são meus estes olhos cheios de encantamento pelas esculturas que o tempo molda nas grutas, e que poucos têm a oportunidade de contemplar.

É minha essa fome de educação, de cultura, de flores, de sombras…

Nada é só meu… Nem os sonhos, nem os pesadelos. Temos em comum a esperança de uma evolução de mentalidade, para que aconteça uma verdadeira transformação em nossos hábitos.

A verdade é que sei que essas fomes não são só minhas, são nossas, e por isso acredito no despertar unaiense.

Alda Alves Barbosa

Nas últimas…

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Quando eu era criança, tinha um amigo incomum. Brincávamos juntos, apesar de ser ele anos mais velho que eu. Em nossas brincadeiras, ele me ensinava à beleza da vida nas coisas simples e pequenas. Mostrava-me o canto dos pássaros, a flor vermelha e solitária, as pequenas e raras pedras transparentes em meio a uma enorme cascalheira… Eu cresci admirando esse amigo. Sua força ao passar por momentos difíceis. Depois das “provas de fogo”, sempre se revigorava. Na bonança ele sabia ser generoso, nos dava frutos, água e beleza ao olhar. Amigo perfeito mesmo com seus galhos tortos, e casca grossa. De alma limpa, reta e perfumada fazia-se abrigo para os mais frágeis e alimentava os que nele se habitavam.

O tempo então passou, e um dia me disseram que aquele velho amigo, que eu pensava ser imortal, estava doente. Não sei quem deu o diagnóstico, mas parece ser algum tipo de câncer.
Aplicam todos os dias, drogas em suas veias, e desde que iniciaram a quimioterapia, seus cabelos começaram cair. Sua pele, antes corada e viva, hoje está pálida e fria. Aos poucos o próprio tratamento o mata. Em um leito, aquele que antes exalava o fôlego da vida, hoje com dificuldade respira. Padecendo em partes, insistem nos cortejos fúnebres de seus pedaços, escoados sob lonas em grandes carros todos os dias. Ontem era encorpado e intenso. Hoje doente e vazio. Amanhã quem sabe, sobreviverá mais um dia.

Dizem que ainda restam-lhe alguns anos de vida…
Dizem que podem descobrir a cura…
Dizem que a cura já existe…
Dizem que a cura depende de mim, de nós.

Elevo minhas súplicas pela continuação da sua vida. Levo em minha mente a lembrança dos dias bons com o velho amigo.

Lucian Grillo