DESDE QUE SERTÃO É SERTÃO…

O cerrado já havia adormecido quando Dona Laudiana começou a sentir as dores do parto. Gemido aqui, gemidos ali, outros acolá… Mulher forte ia suportando a dor com a bravura das mulheres sertanejas.
O distrito de Rio Preto, carente de gente ia aumentar a população através do prazer do macho e da dor da fêmea. Apesar de não conhecer a bíblia, sequer sabia que ela existia, através do padre que esporadicamente vinha a este chão, sabia que o mundo fora feito assim: os homens sustentavam a família com o suor de seu rosto e as mulheres povoariam o mundo com o suor da sua dor.
As lamparinas voltaram a bruxulear. A noite prometia muita preocupação. Era o primeiro filho de Dona Laudiana e de Seu Carlindo. A demora estava preocupando a todos. As poucas famílias do povoado se reuniram na casa de dona Isaura para rezar para Nossa Senhora do Bom Parto, mas quem ficou responsável pela intercessão junto a Jesus, com a promessa de que a criança nascendo sem seqüelas e a mãe renascendo das cinzas da dor, foi Santo Antônio do Boqueirão que seria agraciado como padrinho da criança.
Deus ouviu Jesus que ouviu Santo Antônio do Boqueirão que ouviu a população. O choro decorrente da primeira palmada que a vida já começara a dar na bunda de Josué – nome dado à criança – ecoou pelo vilarejo.
Dois meses após o parto, dona Laudiana, Seu Carlindo e Josué com sua roupa branquinha, confeccionada para o sacramento do batismo, montaram em seus cavalos rumo ao Boqueirão. Iam aproveitar a vinda do sacerdote que aparecia vez em quando. Nas garupas dos cavalos levavam a matula nos embornais. A viagem era cansativa e ainda precisavam por em conta a poeira vermelha que costumava cobrir o sertão quando o pouco vento rasante passeava pelo seu chão.
Santo Antônio esperava junto com o padre que todos os anos vinha da terra-mãe do povoado para os festejos do santo tão querido pelo povo do cerrado.
Dona Laudiana, apesar do cansaço, chegou risonha. De índole festiva, já havia esquecido as léguas percorridas montada no cavalo baio com o Josué nos braços. As pernas e entrepernas ainda doíam, mas naquele momento de extremada importância para o seu filho que ia se libertar do pecado original, tudo era bom, tudo era festa, afinal Josué sendo batizado ele e a família estava em dia com Deus.
Ciumenta por demais, Dona Laudiana ficou a olhar com o rabo do olho se ali havia alguma mulher que podia ameaçar o seu casamento. E achou! Feliciana, mulher de vida livre, mulher à toa, estava ali pra tomar os maridos delas, mulheres decentes, que tinham como único objetivo na vida casar, parir, cuidar do esposo e da grande prole. Não conhecia o prazer sexual, era pecado, mulher direita não sentia esta coisa não, isso era para quem recebia dinheiro pra servir os homens dos outros.
Receosa chamou Altamiro, homem conhecido por demais no lugarejo e que servia de jornal falado no lugar. Pediu a ele que vigiasse seu marido e a colocasse sabedora de tudo, o que é claro foi atendida prontamente. Não demorou muito e lá vem ele com o sorriso estampado no rosto e com “as ventas abertas” disparou: “seu Carlindo comprou um perfume TABU e deu para Feliciana de presente. Estavam num converseiro só! Coitada da senhora, nem respeito por este dia tão importante ele tem”! Era assim, servia com presteza, mas sempre falava além do necessário. A euforia de contar a desgraça do outro era tanta que a saliva saía da boca em profusão indo pousar no rosto das outras pessoas.
Dona Laudiana, gênio forte e decidida chamou o marido que negou com veemência. Jurou por Santo Antônio do Boqueirão, por todos os Santos que não era verdade. Batia com as botas no chão numa atitude de criança birrenta, enquanto erguia as mãos para o céu em
atitude de súplica. Bem no fundo do seu coração, num desespero total, pedia a conivência sagrada para se salvar daquela situação perigosa e vergonhosa.
Não obtendo ajuda do céu agachou em meio à poeira e desenhou no rosto um ar de quem estava sendo caluniado. E como a esposa não acreditava e o céu não ajudava nada havia nada a fazer a não ser suportar tamanha humilhação.
Dona Laudiana não quis saber, pegou rumo à estrada de volta ao povoado do Rio Preto. Recusou montar no cavalo. Fez a travessia com Josué nos braços e seus pés na poeira vermelha. Estava com raiva de Santo Antônio do Boqueirão, afinal ele ia ser padrinho do seu primeiro filho e não protegera a ela nem aquele que seria seu afilhado. Desconjurou.
Na pequenina igreja do povoado, quando o sacerdote retornou, Santo Antônio, não o do Boqueirão, foi padrinho do seu filho Josué.

Alda Alves Barbosa – Unaí, 26 de junho de 2011

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