Pois é… Dias chuvosos e cinzentos têm lá seus mistérios. A vontade de escrever pode vir… E veio, pois preciso do mistério do dia, dos fios tênues de letras se abraçando formando palavras para que eu as teça. Os meus primeiros vocábulos surgiram das eternidades trazidas pelo vento: Cecília Meireles.
Eu não tinha este rosto de hoje,
[…] estes olhos tão vazios,
[…] amargo.
[…] mão sem força
[…] frias e mortas;
[…] este coração
[…] se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou perdida
a minha face ?
Pulsa em meus olhos vertentes de espelhos que declinam a minha imagem que um dia se foi. Ao buscar o aconchego no espelho, tive o sentimento que tudo me foi tirado, deixando apenas os vazios que não serão preenchidos diante do chão da vergonha, da repulsa, do mal estar das gorduras flácidas, dos seios e glúteos caídos… Procuro-me no espelho, não me reconheço. Não, esta não sou eu. Eu não existo assim, tristemente assim, sem tudo, sem nada… Perdi-me diante daquela que penso não ser eu, eu não sou eu ali, esse ser diferente, refletido no vidro espelhado, espalhando a decadência que pulsa em tardes de não- sol em noites de não- lua, tudo inexiste, o espelho desaparece, a vida se vai. Meus olhos opacos em círculos dantescos olham o vulto estático diante do espelho. Ali esta a imagem do desalento, descolorida, um ser debilitado com olhos nadantes, incoercíveis. E se esta for eu, se for eu esta insignificância? Mas o que é significar? Significar é importante para quem? – ‘’Para mim, é claro’’- Mas o que posso significar para esta insignificância no espelho? Nada? E se esta for eu, eu sou o nada insignificante? Mais o nada tem que significar o quê? Mas se esta imagem que está no espelho sou eu, onde está a criança que nascia todos os dias de mim? Onde está a criança que gostava de brincar de ‘’dançar com as palavras’’? Onde está a minha simplicidade da infância? Criança é ponto de partida para as brincadeiras, risos… Criança está sempre nascendo junto com um novo amanhecer. Eu criança não existo mais, acho que virei adulta: não rio, não brinco, durmo pouco porque preocupo muito… Sim, a criança foi embora, o adulto chegou, desfez as malas e fixou morada em mim. Em mim? Mas há quanto tempo estou adulta? Tempo? Onde está o tempo? Eu não vejo, não o sinto, não sei o que ele é. Se ele verdadeiramente existe, aquela do espelho sou eu? Deus, onde está a Sua piedade? Será que neste corpo desfigurado tem espaço para a saudade? Estou com falta de mim – criança, de mim- adulta… Onde estão meus cacos? Quero-me de volta com meus pedaços ajuntados pelos caminhos para fazer morada nos vazios de minha alma. Sim, ali estou eu diante do espelho, sou adulta-criança, rio, brinco, corro, enamoro, apaixono, desapaixono…
Aquela pessoa do espelho com certeza não sou eu, não pode ser eu, como ser eu se o tempo não passou por mim?
Sim, entendi, o tempo é aquela senhora que fez morada no espelho… Ela tem saudades… Não sabe de quê!
Alda! Este artigo é de ‘arrebentar’, hein!? Eu precisava de mais tempo para “saborear” suas obras. Como fazer? Penso que vou ter de reorganizar meu tempo porque, simplesmente não dá prá ficar alheia a tanta beleza…………
Sonia, é mesmo de arrebentar ! Olhar o nosso rosto e não nos reconhecermos nele é tristemente triste… É o declínio da juventude, à proximidade do voo eterno… É o outono, logo o inverno chegará e com ele chegaremos ao lugar da partida. Obrigado pelas palavras de incentivo, estou extremamente feliz por você ter gostado. Obrigado, beijos em seu coração. Alda
Tem hora que fica uma vontade de fazer com que o tempo não exista para nós, mas a razão nos demonstra que, claro, não existe essa possibilidade.
Parabéns pelo texto.
Gostei muito, pois me levou a refletir sobre a existência e o tempo, onde cheguei à conclusão de que somente uma coisa se sobressai aos percalços do tempo, é a sabedoria, por isso, penso eu, a leitura estimula tanto, ali, concentrado naquele livro, vivo uma história onde o tempo não existe.
Um abraço!
Adriano, o tempo só nos presenteia quando nos ausentamos dele ao agarrarmos o instante nos desvinculando da realidade numa concentração qualquer. Mas mesmo nesta atitude ele, o tempo, está passando sem que percebamos, porque estamos focados ou abandonados no imaginário. Ele passa invisível e, enquanto tivermos corpo ,ele nos submeterá às suas exigências. Parabéns Adriano por ter e estaraproveitando o tempo de uma forma tão bonita, tão responsável!